FOLHAPRESS – “Aquilo que a gente não vê, essa é a única realidade real. Não é impressionante? Nós não vemos nem apalpamos, no entanto, isso que não vemos nem apalpamos -isso é o concreto”, diz Mateus Aleluia em frente ao Terreiro Icimimó, espaço com uma história centenária em Cachoeira, no interior da Bahia. Com uma bengala, aos 76 anos, ele conversa com a câmera, enquanto se conecta em silêncio com sua terra.
A cena faz parte de “Aleluia, o Canto Infinito do Tincoã”, documentário que estreia no festival In-Edit, que este ano acontece de maneira remota -apenas pela internet- desde quinta (10). Mais do que narrar uma biografia linear do vocalista, violonista e percussionista, muito conhecido pelo trabalho com os Tincoãs nos anos 1970, o filme apresenta o universo que permeia a mente do artista.
Nisso, estão incluídas cenas do comércio de rua, crianças brincando e conversas informais, tanto na região do Recôncavo Baiano quanto em Angola, onde o artista fixou residência entre os anos 1980 e 2000. Sua passagem pelo país africano é relembrada não apenas em imagens do local, mas por pessoas com quem Aleluia conviveu, como uma mulher que vende artesanato e um de seus amigos mais próximos, um homem chamado Zito Pompílio.
A arte de Aleluia é retratada não como um fim, mas como um resultado natural de sua vivência -tanto física quanto espiritual. Ele não fala sobre detalhes de sua música, nem explicita influências ou referências. A diretora Tenille Bezerra -também responsável pela maioria das imagens- embaralha a cronologia dos acontecimentos, e se esforça para transmitir o estado de espírito do protagonista.
Aleluia não conta sobre o começo dos Tincoãs, que aparecem em imagens dos anos 1960 apresentando boleros na primeira fase do grupo. A partir da entrada de Aleluia, o grupo vive seu período mais celebrado, com os discos “O Africanto dos Tincoãs”, de 1975, e “Os Tincoãs”, de 1977.
É nessa época que o trio vive sua “versão afro-brasileira”, como o próprio Aleluia define no filme. Os Tincoãs têm seu lugar marcado na história da música brasileira com uma estética que soma doces melodias simultâneas de voz a batuques que remetem à cultura que chegou à Bahia da África, mas que desenvolveu características próprias no Brasil. É possível ver o trio em ação, em cima do palco, em imagens antigas deslumbrantes como num show em estádio, no Prêmio Shell de 1982.
Algumas situações são representadas de maneira sutil. O filme não menciona o papel importante de Martinho da Vila na ida de Aleluia -e de seu parceiro de banda, Dadinho, homenageado no documentário e que foi a Angola com ele- a Luanda, mas “Segure Tudo”, música do sambista, é cantada ao fundo enquanto são exibidas fotos da época.
Outro fato sutilmente mencionado é que parte do deslumbramento que levou Aleluia ficar mais de 20 anos em Angola tem a ver com o processo de descolonização que o país viva. O brasileiro chegou ao país em 1980, cinco anos depois de Angola declarar independência de Portugal (a influência cubana no processo pode ser vista em imagens da viagem de Fidel Castro à África naquele período. A filósofa Angela Davis também é retratada).
“A África parecia mesmo um paraíso perdido nosso, da expressão humana da África do lado de cá”, ele diz. “Chegamos, fizemos um show -um show grande-, mas quando cantamos ‘sou de Nanã’, o pessoal respondeu. Parecia uma música deles”.
A espontaneidade dessa conexão entre povos da Bahia e de Luanda fica ainda mais clara quando Zito, seu amigo, lembra-se de quando Aleluia passou horas se comunicando com uma pessoa apresentada como um feiticeiro que não falava português. “Como conversaram? Não sei, mas ficaram lá duas horas. Dentro de uma linguagem, penso, universal, de quem está naquela área”, ele diz.
Aleluia cita “Cordeiro de Nanã”, uma das canções mais famosas dos Tincoãs, mas seu universo sonoro também é mostrado na carreira solo. O artista aparece cantando, ao violão, em frente a um rio, e também gravando faixas que viriam a integrar seu mais recente disco, “Olorum”, lançado no último mês de julho.
Quem pouco conhece da história de Aleluia e dos Tincoãs talvez saia do documentário com a sensação de que ainda precisa pesquisar mais para entender a obra do protagonista do filme.
Do modo como é apresentado, o documentário de Tenille se propõe mais a abrir do que a encerrar a história que conta.
Mais do que um cantor de voz profunda e artista de sensibilidade ímpar, Aleluia surge como um mestre pouco verborrágico, um professor que não precisa de muitas frases para transmitir seu conhecimento. Por isso, os momentos de silêncio parecem tão importantes quanto as frases do cantor que surgem entre as imagens.
Tudo fica amarrado quando, depois dos créditos, Aleluia diz: “Muita gente pergunta por que eu não escrevo um livro. É uma coisa muito intelectual. Para uma pessoa como eu, penso que nada poderia ser feito numa construção arquitetada. Tem que haver espontaneidade. Teria que haver erros –até de português– para que a pessoa entendesse.
“ALELUIA, O CANTO INFINITO DO TINCOÃ
Avaliação: muito bom
Quando: até sábado (12) às 23h59 ou entre os dias 18 (a partir de meio-dia) e 20 (até 23h59)
Onde: festival In-Edit
Preço: R$ 3
Direção Tenille Bezerra