SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma mansão luxuosa cheia de cobras, fontes no formato de corpos femininos que jorram água dos seios e líquidos escorrendo por todos os lados. Esse é o cenário do clipe do último single lançado pela rapper americana Carbi B no começo de agosto, e que é a música mais tocada nos Estados Unidos hoje.
A abundância de água remete ao nome do single, feito em parceria com Megan Thee Stallion, outra rapper em alta. “WAP”, do inglês “Wet-Ass Pussy”, algo como “Boceta Molhada Pra Caralho”, fala de lubrificação vaginal, descreve cenas explícitas de sexo – e gerou reações entre os que a alçaram a um hino feminista e os que definiram a canção como vulgar e repugnante.
As rimas afiadas da dupla de fato deixam claro que elas sabem o que querem quando o assunto é sexo. E o que elas querem inclui cavalgar, contrair a vagina durante a penetração, gozar e gritar. Carbi B também avisa que ela não quer uma cobra-liga, uma espécie de pequeno porte, mas uma cobra-real, com alguns metros a mais.A descrição virou alvo de polêmicas nas redes e, três dias depois do lançamento da música, Cardi B publicou em seu Twitter que não acreditava em como os conservadores estavam tão furiosos com “WAP”.
A postagem era uma reação a comentários como o de DeAnna Loraine, que foi candidata republicana ao Congresso e publicou que as artistas “mandaram todo o gênero feminino de volta para cem anos atrás com a repugnante e vil música ‘WAP'”.
O caso de maior repercussão, no entanto, foi com Ben Shapiro. O comentarista político leu a música em seu programa e disse que a composição ficava cada vez mais vulgar. “É disso que se trata o movimento feminista. Não se trata realmente de mulheres serem tratadas como seres humanos independentes e completos”, disse Shapiro.
Depois do episódio, ele arrastou o embate para uma discussão médica: “Minha única preocupação real é que as mulheres envolvidas –que aparentemente precisam de um ‘balde e um esfregão’ [em referência à música] – recebam os cuidados médicos de que necessitam. O diagnóstico diferencial do médico da minha esposa: vaginose bacteriana, infecção por fungos, tricomoníase”, publicou em sua rede social.
Comparar a lubrificação vaginal a condições médicas não pegou bem e gerou uma nova onda de pessoas saindo em defesa da música e afirmando que, sim, uma vagina molhada é saudável.
“Se ela está com excesso [de lubrificação vaginal] ela está com um problema? Raramente. A música é pra falar de excitação”, afirma Eduardo Zlotnik, ginecologista do Hospital Israelita Albert Einstein. Ele não vê motivo para concluir que se trata de alguém com uma doença na música – trata-se de uma mulher excitada, lubrificada e que quer aproveitar isso, afirma.
“Mais do que o conceito de saúde ou doença, é o conceito de liberdade sexual que a mulher consegue atingir, de poder cantar isso”, avalia sobre a música. “Esse é o lado mais legal.”
Mas a descrição do que é estar molhada em “WAP”, na avaliação do ginecologista, também não deixa de ser um retrato exagerado, já que, de maneira geral, as mulheres não têm uma lubrificação excessiva o tempo todo, explica.
“Sem dúvida algumas podem ouvir essa música e falar ‘nossa, por que eu sou assim ou por que eu não sou assim?’. No dia a dia, chegam ao médico, ao consultório, duas coisas: que está úmida demais, e que a paciente confunde com corrimento, ou que está seca demais, que é a imensa maioria.”
Halana Faria, ginecologista do Coletivo Feminista Sexualidade e Saude, diz que o relato da maioria das mulheres em relações heterosexuais ainda é de um sexo desagradável, baseado na penetração e no desejo masculino –e pouco preocupado com a “Wet-Ass Pussy”.
“A história da saúde de pessoas com vagina é a história da alienação, é a história de falta de acesso ao próprio corpo, a história de necessitar sempre de um especialista para falar pra você o que está acontecendo com o seu próprio corpo”, afirma Faria.
Além dos pedidos explícitos do que as rappers esperam de seu parceiro, elas mostram de outras formas que estão no poder da relação sexual que descrevem na música. É o caso de quando Cardi B canta que faz um “kegel”, se referindo a uma contração vaginal.
A ginecologista explica que kegel, na verdade, é uma prática relacionada ao pompoarismo e a fisioterapia pélvica, que se resume a “dominar ou treinar a musculatura do assoalho pélvico para que as contrações sejam prazerosas”.
Depois dessa onda de polêmicas, além de ser a música mais ouvida nos Estados Unidos, “WAP” ficou também entre as 50 mais ouvidas do Spotify Brasil nas duas últimas semanas, e é a mais escutada da plataforma no mundo. Na parada americana, a faixa teve a melhor semana de estreia no streaming em todos os tempos.
Depois de “Invasion of Privacy”, disco de 2018 que rendeu um Grammy de melhor álbum de rap e botou Cardi B nos holofotes, a cantora se firmou como a voz feminina mais bem-sucedida do trap. O subgênero festeiro e desbocado do rap, que há alguns anos domina os serviços de streaming, vê se multiplicar o número de mulheres à frente do microfone – a própria Megan Thee Stallion é um exemplo.
Mas o retrato do sexo a partir do ponto de vista feminino não é novo na música americana. Na verdade, em agosto, completam-se 100 anos da música “Crazy Blues”, faixa de Mamie Smith que foi uma revolução para cantoras negras.
A música, um lamento sobre um amor que deu errado, vendeu dois milhões de cópias e foi uma prova para a indústria fonográfica de que mulheres negras também consumiam esse tipo de música.
No livro “Good Booty: Love and Sex, Black and White, Body and Soul in American Music”, a jornalista Ann Powers cita uma onda de cantoras negras de blues –as “embaixatrizes do erotismo”- que, nas décadas seguintes a “Crazy Blues”, começaram a falar mais sobre sexo em suas letras.
Em “Sweet, Rough Man”, por exemplo, Gertrude Ma’ Rainey canta que o marido vem batendo nela todas as noites durante cinco anos e depois acrescenta: “Dizem que sou louca, mas vou explicar […] Todos sabem que meu homem é maldoso, mas quando ele começa a fazer amor eu me contorço, me viro e grito […]”.
No Brasil, há um subgênero inteiro do funk dedicado às letras de sacanagem, o “funk putaria”. Nos últimos anos, músicas como “Cai de Boca no Meu Bucetão”, de MC Rebecca, e “Grelinho de Diamante”, de Heavy Baile com Baby Perigosa, fizeram sucesso, mas a tradição é antiga e passa por MCs consagradas como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda e MC Carol.
Os números de “WAP” dão uma proporção mundial a essa abordagem de letras no pop, mas há semelhanças entre o Brasil e os Estados Unidos. No clipe oficial, a música de Cardi e Stallion ganhou uma versão “light” –prática de tirar palavrões e termos mais picantes para deixar a canção mais palatável para um público abrangente.
No funk, não faltam exemplos disso. “Empurra Empurra”, de MC Dricka, que estourou ano passado com o verso “quanto mais eu vou gemendo, o [DJ] Will me fode mais”, virou “quanto mais eu vou dançando, o Will me sarra mais” ao ganhar um clipe.
“Não é só pra conseguir espaço em rádio, playlist e TV, mas também no churrasco em família, para que as pessoas possam ouvir com seus filhos mais novos”, diz MC Dricka. “Tive muitos conflitos internos, até hoje a gente recebe muita crítica. Não é todo mundo que aceita a gente cantar [putaria], ainda mais sendo mulher.”
“Podemos entender a reação contra falar da lubrificação vaginal porque, se formos olhar para a nossa história, a sexualidade da mulher do século 19, por exemplo, que é um século muito perto da gente, foi considerada uma coisa impensável”, explica Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora.
Essa mentalidade pode ser ilustrada pela fala de um médico londrino da época – “Hoje, felizmente sabemos que essa história de que mulher tem prazer no sexo não passa de uma calúnia vil”, conta a especialista. Segundo ela, uma repressão de milhares de anos não se desfaz em algumas décadas – mesmo com o sucesso abrangente de músicas de sexo explícito do ponto vista feminino, com a de Cardi B.
“Apesar de muita insatisfação, tem gente, e não são poucas pessoas, que se agarram ao já conhecido, aos padrões tradicionais, temendo a mudança. Mas eu acho que é uma questão de tempo.”