Michael Flor, um americano de 70 anos, passou 62 dias no hospital para se tratar de Covid. Ao sair, recebeu um documento de 181 páginas que listava todos os procedimentos necessários para salvá-lo neste período.
O valor da nota, de US$ 1,122 milhão, rodou o mundo, expondo os problemas do sistema de saúde no país mais rico do planeta.
A despeito de Michael terminar pagando exatamente US$ 0 desta conta, algo convenientemente esquecido por muitos, o valor levantou novamente um debate nos Estados Unidos: Como pode um país tão rico não garantir o básico de acesso a saúde a seus cidadãos?
O tema virou até pauta de campanha, com promessas de um sistema “universal”. Mas a realidade americana, porém, é um tanto mais complexa.
Veja bem, não é como se o governo americano estivesse ignorando os custos que seus cidadãos têm com saúde enquanto decide quantos caças supersônicos F35 irá comprar neste ano.
Por ano, o governo americano gasta US$ 1,6 trilhão com saúde. Isso equivale a toda riqueza produzida pelo Brasil no mesmo período. Em relação ao PIB, os gastos públicos por lá, que se limitam a famílias pobres e idosos, consomem 9% do PIB. Ao todo, o país gasta 18% do PIB em saúde.
No Brasil, onde o gasto de saúde está em 8% do PIB, o governo responde por 44% disso, ou 3,6% do PIB. Na prática, isso significa que as famílias brasileiras gastam mais em saúde do que o governo.
Em resumo, o governo americano gasta o dobro em saúde do que gasta o governo brasileiro.
Os problemas, portanto, estão muito longe da quantia gasta ou da atenção dada pelo governo. Trata-se de uma questão complexa, envolvendo interesses de corporações, regulações regionais distintas e outras questões.
Justamente por isso, comparar ambos os países não faz lá muito sentido. Nossos problemas são outros, e os meios de melhorarmos o SUS, que tem um papel fundamental no controle de doenças, vacinação e atendimento à primeira-infância, por exemplo, não virão de uma birra ideológica que reduz toda discussão a público vs. privado.
Entre 2009 e 2020, por exemplo, o SUS perdeu 34,4 mil leitos. Cerca de 1 em cada 10 leitos sumiram numa década em que a população idosa no país começou a superar a população jovem.
Há quem, estando preso a discussões ideológicas, aponte o teto de gastos como causa de queda nos repasses. Uma análise feita pelo economista Marcos Mendes, porém, mostra que nos 15 anos antes do teto, o orçamento do SUS jamais esteve acima do mínimo determinado por lei.
O SUS jamais foi prioridade da classe política. Mas falar disso seria chover no molhado.
A questão vai além. Cerca de 54% dos atendimentos são feitos por meio das chamadas Santas Casas. Entidades de origem religiosa (como a própria noção de hospitais, uma criação de ordens católicas), elas são, em essência, entidades privadas sem fins lucrativos.
Pode parecer estranho para quem vive de polarizar o mundo entre Estado vs. setor privado, mas este conceito de “privado sem fins lucrativos” funciona muito bem ao redor do mundo (como as universidades americanas de elite, por exemplo).
Por aqui, entidades do tipo não apenas existem, mas são parte essencial da manutenção do nosso sistema público de saúde. Das 2.172 entidades filantrópicas de saúde, 1.704 atendem pelo SUS. Ao todo, 70% dos atendimentos de alta complexidade, como transplantes, são realizados em entidades do tipo.
O problema, claro, é aquele que todo fornecedor do governo já conhece. A distância entre a prestação do serviço e o pagamento pode demorar meses, ou até mesmo anos.
De norte a sul do país, governos estaduais em crise têm represado pagamentos e parcelado dívidas de repasses não cumpridos. Em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, por exemplo, a dívida com hospitais filantrópicos ultrapassa R$ 1,3 bilhão quando somadas (ambas em acordo para serem pagas).
Na outra ponta, as Santas Casas devem R$ 22 bilhões para bancos e o INSS. Ao todo, essas entidades fundamentais, que controlam 155 mil dos 300 mil leitos do país, passam por desequilíbrio financeiro em 90% dos casos.
Ao contrário do próprio SUS, que se fortaleceu desde sua criação, as entidades auxiliares têm sido largadas à própria sorte.
Muitas, como a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, precisam recorrer a empréstimos com juros de até 22% ao ano, alguns saídos do mesmo BNDES que financia jatinhos da Embraer a juros que variam entre 2,5 e 8,7% ao ano.
Para piorar, a tabela do SUS para remunerar os hospitais que realizam atendimentos possui uma defasagem crônica. Como o Estadão publicou em editorial há alguns anos, os reajustes de 74% dos procedimentos ficaram abaixo da inflação.
Há procedimentos cujos valores não são atualizados há duas décadas. Outros, até sofreram redução de valor.
Nosso sistema é, como se pode perceber, repleto de remendos e descompassos. É aí que a “defesa” do SUS, tão bradada nas redes sociais, poderia colaborar.
Ao contrário do que possa parecer para alguns, o SUS não é um sistema composto por hospitais públicos e funcionários públicos, mas sim por um mecanismo de financiamento. Esse, de longe, é o maior acerto na ideia por trás de sua criação.
Os exemplos ao redor do mundo
O modelo brasileiro de sistema público não é único no mundo. Em boa parte, ele possui grandes inspirações em outros países, como o Reino Unido e seu NHS.
Em diversos outros países bem posicionados em rankings internacionais de avaliação dos serviços, os sistemas de saúde mesclam o público e o privado, garantindo ao setor público o papel de mantenedor dos custos para os cidadãos cuja renda não permite bancar seguros privados.
Na Alemanha, onde todo cidadão é obrigado a possuir um seguro de saúde, a gestão é feita por seguradoras, contando com subsídios públicos que chegam a ⅔ do valor. Cada cidadão destina 7,3% do seu salário para uma seguradora, o que, na prática, significa que aqueles que têm salários maiores pagam valores maiores.
Quem está entre os 10% mais ricos do país pode optar por planos de saúde privados (desafogando, assim, as obrigações dos planos públicos).
Em Portugal, o SNS (Sistema Nacional de Saúde) cobre boa parte dos gastos, apesar de haver a cobrança de uma pequena taxa para consultas.
Já no Canadá, o governo responde por 70% dos gastos (contra 44% no Brasil e 51% nos Estados Unidos), com um pequeno detalhe: cerca de 94% dos repasses vêm dos estados e não da União.
Exemplos ao redor do mundo sobre a maneira como países lidam com seu sistema de saúde não faltam, e vão muito além de uma discussão sobre quem os financia. Via de regra, o componente mais relevante nas discussões está na maneira de gerir o sistema.
Seja na Alemanha ou na Austrália, que adota sistema similar, há um forte componente atuarial, o que significa que os sistemas buscam sempre um equilíbrio entre receitas e despesas. Em nenhum deles ocorre o que fazemos aqui: deixar que a saúde dependa da boa vontade dos políticos em investir na área.
Os desafios no futuro próximo
Nenhuma outra expressão será tão relevante para o planeta quanto a palavra “demografia”.
Nos próximos anos, ela deve impactar sua aposentadoria, salário, educação, saúde, a taxa de juros, seu custo de vida e outros tantos fatores.
Isso ocorre porque evoluímos tanto em questão de saúde que, pela primeira vez na história humana, o mundo possui mais idosos do que crianças entre 0 e 4 anos.
O impacto disso na saúde é evidente – afinal, idosos tendem a demandar mais cuidados nessa área.
O grande problema para o Brasil é que estamos envelhecendo sem ter passado pelo estágio em que os países enriquecem, quando sua população é jovem e mais produtiva.
Teremos cada vez mais gastos em saúde. O problema, claro, é que estes recursos terão de sair de algum lugar. Afinal, saúde custa caro.
Com 94% do orçamento do governo engessado e inúmeros estados gastando mais de 100% da sua receita, precisamos voltar a crescer e desconcentrar gastos.
Como você já deve ter percebido, mexer no orçamento público é uma tarefa hercúlea. Considerando que somos um país pobre, mesmo gastando mais do que a média dos demais países em aposentadorias, o valor pago aos idosos ainda é insuficiente para dar a eles uma condição de vida digna.
Há problemas a serem socorridos por todos os lados, e uma única possibilidade de solução: melhorar o crescimento econômico.
Para fazer isso, também há apenas um caminho: aumentar a produtividade dos trabalhadores brasileiros.
Defender o SUS, ou o acesso à saúde, significa essencialmente se comprometer a encontrar soluções para aumentar a riqueza produzida no país.
Como os últimos anos tem mostrado, não será fácil, mas há bons indicativos de que em alguns pontos já melhoramos.
No campo privado, com a queda dos juros, os recursos para companhias na bolsa com foco em saúde tem aumentado. As duas maiores do setor, NotreDame e Hapvida, têm promovido sucessivas aquisições e promovido um corte de custos no setor.
Em ambas, os incentivos são claros: se elas não controlarem os custos médicos e entregarem um serviço de qualidade, serão punidas pelos seus acionistas. O resultado é que as duas empresas têm promovido uma corrida para cortar gastos e, assim, atrair mais clientes.
Ao contrário do que alguma picuinha ideológica possa sugerir, isso não é, de maneira alguma, um ataque ao SUS. Afinal, mesmo que uma carta defina que o acesso a saúde é um “direito universal e irrestrito”, o SUS ainda lida com recursos escassos.
Cada vez que o setor privado foca em ampliar serviços às famílias de classe média e às mais ricas, ele está desafogando o serviço público, que passa a dispor de mais recursos por pessoas.
A hora de defender sistemas idealizados já passou, e o tempo não volta. Pouco importa quem irá prover o serviço. O que importa é que ele exista.
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