BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Quando Gabriel García Márquez (1927-2014) terminou de escrever “Cem Anos de Solidão”, em 1966, ele e sua mulher, Mercedes, estavam na Cidade do México e não tinham dinheiro para enviar o manuscrito completo para a editora Sudamericana, em Buenos Aires, que havia se comprometido a publicá-lo.
Gabo contava que foi de Mercedes a ideia: primeiro enviaram uma metade com os poucos trocados que tinham. Depois, voltaram para casa, venderam os eletrodomésticos que sobravam e, com o dinheiro, enviaram o restante do livro.
Não se sabia, então, que a obra ajudaria Gabo a ganhar um Nobel de Literatura. Uma vez colocada no correio, Mercedes apenas disse ao marido, em tom de advertência: “Só o que me falta agora é que esse romance seja ruim”.
Esta era uma das muitas anedotas que o escritor colombiano contava de sua mulher, sempre em tom de elogio e de homenagem. Sem ela, dizia, ele não teria conseguido construir sua obra.
Mercedes Barcha Prado morreu na noite de sábado (15), aos 87, na Cidade do México, onde o casal vivia há tempos. Além de companheira e cúmplice literária de Gabo, Mercedes também esteve atuante na Fundação Gabo (antes conhecida como Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano), criada pelo marido para estimular a formação de jovens jornalistas e reunir os profissionais da América Latina.
Barcha nasceu em 1932, em Magangué, no norte da Colômbia, de uma família de origem egípcia. Tinha seis irmãos e o pai era farmacêutico. Gabo a conheceu em 1941, quando ela tinha 9 anos e ele 13, em Sucre.
O escritor havia crescido em Aracataca, com avós e tias, mas visitava Sucre com frequência, onde seus pais viveram uma época. Ambos se casaram em 1958, na cidade litorânea de Barranquilla, e tiveram dois filhos, Rodrigo e Gonzalo.
No primeiro volume de suas memórias, “Vivir para Contarla”, Gabo conta que havia pedido Mercedes em casamento aos 13 anos, mas que apenas a reencontrou alguns anos depois. Na ocasião, pela primeira vez “ela aceitou um convite meu e fomos dançar no domingo seguinte no hotel do Prado”. Até aí, Gabo contava ter recebido quatro “nãos” de Mercedes.
É possível conhecer mais dessa história no documentário “Gabo, a Criação de Gabriel García Márquez”, de Justin Webster (Netflix).
Em uma entrevista à revista “Playboy”, em 1982, Gabo contou que, até fazer sucesso na literatura, o casal passou por muitas dificuldades financeiras, e que Mercedes tinha ficado com todos os afazeres da casa, da criação dos filhos às finanças domésticas, para que ele ficasse liberado para escrever.
“Ela mantinha a casa em pé, enquanto eu estava no front. Foi capaz de proezas maravilhosas”, afirmou, referindo-se inclusive a empréstimos pedidos a amigos para o sustento da família.
“Diariamente, ela ainda conseguia cigarros, cadernos, canetas, o que eu precisasse para escrever”, resumiu Gabo.
Quando o casal viajou a Buenos Aires para o lançamento mundial de “Cem Anos de Solidão”, Gabo pediu a seu editor que o pagamento pelo manuscrito fosse feito “em notas pequenas”.
Com isso, forrou a cama do hotel em que o casal se hospedava, para mostrar a Mercedes que o sacrifício, afinal, valera a pena, e que o romance era, de fato, bom.
A Fundação Gabo publicou a nota de pesar: “Incondicional e silenciosa, ela se manteve sempre ao lado do escritor, vivendo com ele todas as aventuras do ofício literário”.
Alejandra Fausto, ministra da cultura do México, afirmou, nas redes sociais: “Era a cúmplice indiscutível de Gabo, mãe de Rodrigo e Gonzalo. Voam as borboletas amarelas”, referindo-se a uma passagem de “Cem Anos de Solidão”.
Em seus últimos anos, Mercedes seguia ativa tanto na Fundação Gabo como na organização do legado literário do marido.