Em dezembro de 1992, Fernando Collor de Mello se tornaria o primeiro presidente a sofrer um processo de impeachment no Brasil, caso não tivesse renunciado ao mandato horas antes de o Senado votar o seu afastamento por suspeita de corrupção. Quase três décadas depois, o hoje senador por Alagoas afirma que o impeachment está banalizado no Brasil e que “qualquer coisa, por menor que seja” gera motivo para protocolar o afastamento do chefe da República. Em entrevista exclusiva ao site da Jovem Pan, o ex-presidente também diz que a saída de Dilma Rousseff em 2016 foi um “processo político”, mas justo, “na medida em que houve aprovação por parte do Congresso Nacional.” Quanto aos processos contra Jair Bolsonaro, o senador afirma ser “absolutamente improvável” que eles passem pelo Congresso, mas ressalta que, caso haja mobilização popular, “qualquer presidente” pode ser afastado, e “sem dúvida nenhuma” a atual popularidade do ex-capitão está atrelada à manutenção dos benefícios sociais.
A abertura comercial brasileira, após décadas de protecionismo, foi uma das principais marcas da breve passagem de Collor pela presidência entre 1990 e 1992. Hoje, ele vê que o processo precisa ser refeito, e que a agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, “não se dedicou muito à questão da abertura comercial.” Eleito com 40 anos de idade, Collor foi o presidente mais jovem a assumir o comando da República, e uma das estratégias de campanha foi justamente explorar a jovialidade do candidato como fator de renovação na política. Hoje, aos 71 anos, o senador busca mais uma vez se aproximar das novas gerações por meio das redes sociais, onde ganhou fama recentemente pelas respostas descontraídas que dá aos mais diversos questionamentos. “Se eu não fosse uma pessoa bem-humorada, não estaria vivo hoje”, diz. Além de se divertir, o ex-presidente afirma que o contato direto com os internautas — que na maioria não eram nem nascidos quando ele esteve à frente da República —, “é uma oportunidade de dar minha versão sobre os fatos.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
O afastamento de Dilma Rousseff completou quatro anos no fim de agosto. Agora, o senhor vê que a saída foi justa? A saída dela foi justa na medida em que houve a aprovação por parte do Congresso Nacional e houve uma obediência do rito determinado pela Constituição da República. Como nós sabemos, o impeachment tem um processo eminentemente político. No fundo, no fundo, o que acontece num processo como esse é a instrumentalização da lei para materializar uma decisão política previamente tomada. Ou seja, um grupo parlamentar e com maioria no Congresso Nacional tomou a decisão política e instrumentaliza a lei, para que essa lei materialize essa decisão. Isso significa claramente que esse é um instrumento político em que não há nenhuma juridicidade, nenhum aspecto jurídico a embasar fortemente essa solicitação. Apenas a lei é instrumentalizada politicamente para atender a esse fim, de modo que foi uma decisão política, uma decisão da maioria do Congresso Nacional, que representa o povo brasileiro. Portanto, nós não podemos nos opôr a isso.
A saída de Dilma foi um movimento correto ao Brasil? Não sei se foi correto, eu não poderia dizer. Acredito que foi uma decisão dura, porque todo processo de afastamento é um processo que traumatiza o país, traumatiza a classe política brasileira, e a sua repercussão junto à sociedade é muito grande. O Congresso é muito sensível à voz das ruas, e a voz das ruas naquele momento estava claramente clamando pelo afastamento da então presidente Dilma Rousseff, e isso influiu decisivamente na tomada de decisão que o Congresso adotou com o seu afastamento.
Se houver um movimento nas ruas pedindo a saída do presidente Jair Bolsonaro, o Congresso pode ser pressionado pelo impeachment? Pode pressionar não somente esse Congresso, mas qualquer outro Congresso, em relação a qualquer outro presidente. É um fator primordial. O processo de impeachment é um processo eminentemente político, e quem decide isso é a classe política, por intermédio do Congresso Nacional, que é muito sensível ao clamor das ruas. Claro que se houver clamor nas ruas em relação a qualquer presidente da República que esteja estabelecido no poder, sem dúvida isso terá influência junto ao Congresso Nacional, que saberá calibrar se essa influência é tão alta a ponto de afastar o presidente, ou se pode ser superada de alguma forma.
Até pouco tempo atrás, havia movimentação para o impeachment de Bolsonaro. O senhor acha que a distribuição do auxílio emergencial evitou que o processo de afastamento avançasse no Congresso? Independentemente disso, nenhum processo de impeachment do presidente da República estaria propenso a ser aceito pelo Congresso. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, vem agindo com muita consciência, tranquilidade e responsabilidade ao não prosperar com cerca de 40 pedidos de processo de impeachment do presidente da República que já existem. Processo esse que eu sou absolutamente contrário. Esse instrumento do impeachment foi muito banalizado no Brasil, e agora qualquer coisa, qualquer motivo, por menor que seja, sempre dá abertura para alguém chegar e assinar um pedido de afastamento do presidente da República. Mas independentemente do auxílio emergencial, a abertura de processo de afastamento do presidente seria absolutamente improvável nas circunstâncias atuais.
Improvável pelo Congresso não querer aceitar ou pela situação do país? Porque não há nenhum crime de responsabilidade que possa ser lido e visto com clareza para sustentar um pedido de afastamento de Bolsonaro. Os motivos alegados são muito subjetivos, muito na base da suposição, por exemplo, de que a democracia está correndo risco em função das declarações do presidente em relação aos outros poderes. São coisas subjetivas. Realmente isso aconteceu, esse desencontro na relação entre os poderes da República, mas esses desentendimentos já foram superados. Então, não há nenhuma dificuldade em se continuar transitando normalmente dentro do sistema democrático com o atual governo que se instalou fruto do voto popular em 2018.
Mesmo em meio à pandemia e crise econômica, a popularidade do presidente Jair Bolsonaro está batendo recorde. A que o senhor credita esse momento de entusiasmo? Sem dúvida nenhuma, em grande parte é devido às medidas emergenciais que ele adotou de maneira acertada. Afinal de contas, são 60 milhões de brasileiros, segundo as estimativas, que estão sendo beneficiados por essas medidas emergenciais. Isso, sem dúvida nenhuma, reflete nas pesquisas de opinião pública que lhe concedem esse índice de aprovação recorde. Naturalmente, ele assume um compromisso de continuar com essas colaborações, não nos níveis que hoje estão sendo concedidas, porque não há condições para isso, mas vai ter que continuar oferecendo esse auxílio, e vai ter também que estabelecer qual será o montante que será dado a cada habitante que esteja em condições de receber esse benefício. Isso tudo vai definir naturalmente se ele continua compromissado ao mesmo tempo com a questão fiscal do país, e também com as expectativas criadas pela população em relação a essa ajuda que vem sendo dada.
A impressão que a governança do presidente fica “colada” a essa ajuda que foi dada até agora. O senhor acha que essa popularidade depende da manutenção desse benefício? Sem dúvida nenhuma, depende. Ele há de conciliar esses dois fatores. Não é somente pela questão de popularidade, é também de necessidade da população de poder ter o mínimo de auxílio para superar as grandes dificuldades que ainda estão por chegar em função da devastação econômica causada pela pandemia. Ele vai ter que conciliar essa questão da possibilidade fiscal do país, com a possibilidade de atender essas expectativas que são absolutamente necessárias, e com isso resultar na manutenção desse prestígio que ele alcançou em função dessas medidas.
O senhor virou uma figura icônica no Twitter, com uma linguagem bastante leve e bem-humorada. O senhor é assim na vida privada? Se não fosse uma pessoa bem-humorada, eu não estaria vivo hoje. É fundamental que a gente saiba levar a vida olhando sempre pelo seu lado positivo, sempre pelo lado que traz um maior alento ao espírito. O humor está diretamente relacionado a isso. Quando ingressei nas redes sociais, logo percebi que haviam dois caminhos: ou transformar minhas redes sociais em um ringue de MMA, ou utilizar meu bom humor para ter essa relação com os internautas, e isso vem dando certo. Aprendi muito nesse tempo a utilizar uma linguagem mais popular, a utilizar uma mensagem pouco mais curta. Com base nisso, estou levando sempre com bom humor e graças a isso tenho aumentado meu número de seguidores e a minha relação com os internautas, o que vem me agradando bastante.
É o senhor mesmo quem responde? Sim, sou eu quem faço.
Pessoas que nem eram nascidas quando o senhor foi presidente fazem parte da sua rede social. De onde vem essa identificação? Há uma relação bastante interessante. Eu fiz um levantamento do perfil daqueles que me seguem no Twitter e verifiquei que quase 70% têm entre 25 e 35 anos de idade. Quem está nesse intervalo ou não era sequer nascido, ou tinha muito pouca idade. Há uma curiosidade muito grande dos seguidores daquilo que aconteceu ao longo desse período em que estive na presidência da República e o pós-presidência, e também até antes, como eu comecei na política. Há toda essa curiosidade, e é uma oportunidade que eu tenho de dar minha versão sobre os fatos vividos e contar a minha história.
O governo do senhor foi o responsável pela reabertura da economia no início dos anos 1990. O que avançou nesse processo? E o que precisa ser feito para ir além? Na realidade, não foi uma reabertura. O que aconteceu no meu governo foi uma abertura comercial, porque a última abertura comercial de que se tinha notícias antes do meu governo foi feita por dom João VI, em 1808, quando aportou na costa do Brasil e abriu os portos às nações amigas, entenda-se a Inglaterra. A abertura comercial promovida por mim foi a que aconteceu depois desse episódio. O Brasil era um país inteiramente fechado, com certo complexo de país colonizado e com receio de se abrir e estabelecer parcerias comerciais que fossem mutuamente vantajosas. A abertura comercial feita pelo meu governo foi realmente indispensável e imprescindível para que o Brasil alçasse voos e se tornasse uma das 10 economias mais importantes do mundo. Infelizmente, depois que deixei a presidência da República, a economia voltou a se fechar, e hoje precisamos de uma nova abertura comercial. As tarifas foram todas modificadas diante daquelas que eu havia deixado. E as dificuldades burocráticas também aumentaram muito. Um exemplo muito próximo de nós é o Mercosul, nas relações nossas com parceiros tão identificados conosco por questão da fronteira, como a Argentina, Paraguai e Uruguai, sobretudo com a Argentina. Temos enorme dificuldade de equalizar essa questão de tarifas, e isso se expande para países europeus. Nós precisamos fazer um nova abertura para que o Brasil possa se beneficiar, sobretudo no momento em que estamos começando a tatear nesse novo mundo do 5G, da inteligência artificial, da internet das coisas. Para tudo isso, é necessário abertura ainda mais atualizada.
A agenda do ministro Paulo Guedes vai nessa direção? Por enquanto, ele não se dedicou muito à questão da abertura comercial. Ele tem um projeto ultraliberal, que acho que vai entrar em conflito com o projeto de política econômica que se opõe à linha dele. Estamos vivendo sob os efeitos de uma pandemia que não se esgotou. No momento em que ela der sinais de que está se esgotando, então ficará mais visível para todos nós a situação de devastação econômica, não somente do Brasil, mas de todo o restante do mundo. Nós precisamos nos antecipar a isso. Acredito que Guedes vai ter de fazer uma opção muito clara entre qual das duas políticas passará a vigorar até o fim da tramitação no Congresso Nacional do novo orçamento para 2021. Será o primeiro momento em que iremos avaliar, e o próprio ministro irá avaliar, se ele permanecerá ou não à frente do Ministério da Economia, porque a política econômica a ser adotada pela aprovação do Congresso do novo orçamento é que vai ser determinante para aplicação das medidas que ele tem em mente, mas em uma situação completamente diferente daquela diante da qual ele assumiu.
Na sua opinião, o Supremo Tribunal Federal está atuando acima dos poderes constitucionais? De jeito nenhum. O Supremo Tribunal Federal está agindo absolutamente circunscrito às suas atribuições constitucionais. Há uma dificuldade de algumas pessoas entenderem que o Supremo não chega simplesmente com um ministro que tira da cabeça uma decisão, coloca em discussão dos seus pares e é aprovada. Não é assim. O STF sempre age de forma reativa, ele jamais toma uma decisão do nada. Sempre age em função de alguma consulta, de alguma arguição de inconstitucionalidade, de alguma solicitação reclamando de alguma decisão tomada pelo poder Executivo ou de outro poder. E o Supremo, a partir daí, toma a sua decisão. O Supremo vem cumprindo rigorosamente com suas atribuições constitucionais, e não vem, em momento nenhum, interferindo na vida política nacional.