Nesta segunda-feira, 31, o processo de impeachment que afastou a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República completou quatro anos. A petista foi acusada de cometer crime de responsabilidade contra a lei orçamentária ao descumprir repasses do governo a bancos públicos, praticando as chamadas “pedaladas fiscais”, e editar decretos de crédito suplementar sem a autorização do Congresso. Em meio a escândalos de corrupção, instabilidade política e econômica e pressão popular, Dilma deixou o cargo mais alto do executivo após ser reeleita nas eleições presidenciais de 2014. Em entrevista exclusiva à Jovem Pan, Kim Kataguiri (DEM), um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL) e Rogério Chequer, cofundador do Movimento Vem Pra Rua (VPR), destacam a importância da queda da ex-presidente.
A união da população durante o processo de impeachment é a primeira lembrança deste período que salta à memória de Rogério Chequer. Ele afirma que o Vem Pra Rua não surgiu com a intenção de derrubar Dilma, mas sim organizar o povo frente à crise política e econômica no País. No entanto, a partir de 2015, o movimento se declarou favorável ao impeachment, tornando-se um dos maiores mobilizadores da população em prol da pauta. “A queda de Dilma foi essencial para estabelecer uma linha que separa o correto do errado na administração pública. A partir dele, compreendemos que o errado precisa ser punido e que, se não delimitarmos esta linha, não conseguiremos estabelecer uma cultura de prosperidade para o País”, afirma Chequer. Já o MBL, fundado em 2014 com a organização de manifestações em apoio às investigações da Operação Lava Jato e por mais liberdade de imprensa, considera o processo de retirada da petista do poder um “movimento histórico, propositivo e necessário para acabar com a dinastia de 13 anos de corrupção, de problemas na máquina pública, de inchaço do Estado e completa deterioração da economia”, diz Kim Kataguiri. Apesar de organizarem os protestos a favor da derrubada do Partido dos Trabalhadores (PT) da cadeira presidencial, nenhum deles esperava a proporção que os atos de rua tomariam.
“Quando começou a mobilização em torno do impeachment, não imaginamos que seria um processo tão longo. Fiquei extremamente surpreso com o tamanho que tomou. Foi um sentimento de esperança que uniu a população, a oposição ao governo não era unânime, mas a avassaladora maioria apoiou o movimento. Esperávamos levar cerca de um milhão de pessoas às ruas e, apenas no dia 13 de março de 2016, havia mais de seis milhões de pessoas nos atos espalhados em 500 cidades do Brasil. Junto com toda esta surpresa, vieram as responsabilidades, mas cuidamos da segurança para que não acontecesse imprevistos”, relata Chequer. Segundo o ativista, a mobilização popular foi o primeiro passo em direção ao impeachment da ex-presidente. “Quando aderimos à bandeira contra a Dilma, em 2015, percorríamos o Congresso Nacional e não encontrávamos dez deputados e cinco senadores favoráveis à pauta. Era muito claro que, até então, não havia um movimento político em torno disso. Os parlamentares perceberam a real possibilidade do impeachment e criaram o arranjo político necessário apenas quando as manifestações explodiram”, diz. Os atos em apoio à queda da petista cresceram em 2015, quando reuniram milhões de pessoas por todo o País nos dias 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto e 13 de dezembro. Já em 2016, a organização popular fez com que o dia 13 de março fosse marcado pelo maior ato político já realizado na história do Brasil.
De acordo com Kim Kataguiri, um impeachment sempre ocorre de fora para dentro, sendo dependente de uma pressão popular capaz de obrigar o parlamento a tomar uma decisão difícil. “No que diz respeito ao processo de Dilma, nem a oposição era favorável à queda, o próprio PSDB, principalmente o Aécio Neves e o Aloysio Nunes, faziam uma resistência muito grande, defendiam que fosse levado adiante um processo de cassação do mandato no TSE — mesmo sabendo que este não daria em nada, para que Dilma sangrasse até o término do mandato e, posteriormente, eles ganhassem as eleições. Sem a mobilização popular, não teria acontecido o impeachment.” Entre os bastidores do longo processo, o líder do MBL lembra dois momentos em que perdeu as esperanças de que a ex-presidente pudesse ser deposta. “Uma destas situações aconteceu durante uma reunião do Partido Progressista. Nela, o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS) me disse que o parlamento estava resistente por conta da negociação de cargos promovida pelo governo e que, muito provavelmente, o PP não embarcaria a favor do impeachment, sendo o Goergen uma das únicas vozes da sigla que o defendia”. O outro momento se deu em 24 de abril de 2015, quando o deputado chegou em Brasília após a Marcha Pela Liberdade para protocolar o pedido de impeachment na Câmara dos Deputados. “Me decepcionei assim que entregamos a ação. Fizemos uma reunião com os líderes partidários do PSDB e do DEM e, ali, eles afirmaram que seria dificílimo aprovar a ação, porque achavam que Eduardo Cunha, até então alvo de processo de cassação, seguraria o pedido para evitar ser deposto”, afirma.
Ainda em 2015, o impeachment enfrentou barreiras para avançar quando o Supremo Tribunal Federal redefiniu seu protocolo. “O STF fatiou o rito do processo, passando a votação da admissibilidade também para o Senado. Diferente do ocorreu com Collor, que caiu em 1992, por exemplo, a admissibilidade do processo da Dilma teria que ser votada tanto na Câmara, como no Senado. Nesta hora, boa parte da imprensa e do próprio governo consideraram que o processo estava morto”, explica Kim Kataguiri. No entanto, em fevereiro de 2016, a prisão de João Santana, marqueteiro do PT, em um desdobramento da operação Lava Jato, acirrou os ânimos, aumentou a mobilização popular e impulsionou os protestos do dia 15 de março, gerando maior pressão na tramitação do processo contra Dilma Rousseff. Desta forma, em 11 de abril, a Câmara dos Deputados deu início às votações que culminariam na cassação do mandato da petista.
Impactos do impeachment na política
Os grupos Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre classificam o impeachment como um episódio fundamental para a história do Brasil, com suas causas e consequências bem definidas. Mas cada um deles percebe a seu modo o impacto do processo nos caminhos recentes da política nacional. Para Rogério Chequer, a mobilização em torno da queda da ex-presidente foi determinante para unir as pessoas críticas da esquerda, mas não para eleger o atual presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Claro que um evento tão grande quanto este influencia os seguintes, mas não acredito que tenha sido diretamente o responsável pela ascensão de Bolsonaro. Muitos políticos tentaram se aproveitar da bandeira do impeachment, e neste sentido, o presidente foi o que melhor tirou proveito da situação. Por isso, o seu aproveitamento é que foi o fator determinante para a eleição”, afirma. Kim Kataguiri acredita que, caso Dilma não tivesse sido deposta, atualmente seria outro o presidente a ocupar a cadeira no posto mais alto do executivo. “Caso o impeachment não tivesse acontecido, sem dúvidas, poderíamos falar de uma volta do Lula à Presidência da República nas eleições de 2018. Além disso, o movimento foi importante para renovar o quadro eleitoral nas instâncias federais e estaduais, já que muitas figuras políticas, como eu mesmo, foram fruto deste processo.” O jovem deputado não descarta um retorno de Lula nas próximas disputas eleitorais. No entanto, diz que o capital político do ex-presidente está ameaçado pelo surgimento de novas lideranças na esquerda que, segundo ele, ensaiam um movimento de abandono do lulismo.
Atualmente, após mobilizarem a população a favor da luta anticorrupção, os líderes não economizam críticas ao exercício de Jair Bolsonaro na cadeira presidencial. O movimento Vem Pra Rua argumenta que o maior problema do País não se concentra na figura do presidente, mas na criação de uma nova forma de se praticar a impunidade. “O que mais nos preocupa é o que está sendo feito institucionalmente contra a luta anticorrupção, uma de nossas maiores bandeiras. Existem atitudes da Procuradoria Geral da República, do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e, uma omissão do Senado Federal, que favorecem o retorno político ao ambiente da criminalidade. Estamos muito próximos deste destino, inclusive com a demora da PGR para prorrogar a Operação Lava Jato”, diz Chequer, ao argumentar que a impunidade no Brasil está adquirindo novos contornos. “Há a formação de um novo establishment que se relaciona com as fortes suspeitas envolvendo o presidente e sua família. Estão buscando saídas institucionais para se safarem de punição.” Rogério Chequer aponta a saída do ex-ministro Sergio Moro do governo como um resultado deste processo. “Percebeu-se que Moro era inconveniente para quem tinha culpa no cartório e, assim, houve um grande arranjo envolvendo o Presidente da República para tornar sua permanência absolutamente insustentável. Então, a saída do ex-ministro é consequência direta desse novo esquema que permite que a corrupção volte a reinar.”
Neste sentido, o ativista do Vem Pra Rua afirma que a impunidade pode emergir com mais força do que nos próprios anos do PT, uma vez que estão sendo derrubados elementos já conquistados, como a prisão preventiva, a delação premiada e a prisão em segunda instância. Considerando a situação complexa, o grupo entende que o impeachment de Bolsonaro não seria a solução ideal para o retorno do combate à corrupção. “Neste momento, a saída mais eficiente seria uma atuação mais enfática do Senado, que tem o poder de pressionar determinadas atitudes do Supremo e pedir impeachment de seus ministros, assim como questionar a PGR. Ele pode tomar estas atitudes imediatamente, mas muitas ações estão engavetadas por Davi Alcolumbre, presidente da Casa, que está permitindo a destruição dos elementos do combate à criminalidade na administração pública”, diz.
Kim Kataguiri, por sua vez, rejeita o presidente de maneira mais incisiva. “A figura de Bolsonaro prejudica a direita porque ele, em si, não é liberal e não acredita na economia de mercado. O presidente até sinalizou um aceno ao liberalismo com Paulo Guedes, mas o abandonou neste segundo ano de mandato para aderir ao desenvolvimentismo junto ao Centrão e às outras figuras políticas que sempre criticou.” Ao passo em que não define Jair Bolsonaro como um liberal, também não o considera conservador. “Conservadorismo pressupõe prudência e essa é a última palavra que poderia definir o governo dele, marcado por atitudes autoritárias, desrespeito às instituições e cometimentos de crimes de responsabilidade”, afirma. O cofundador do MBL, um dos protagonistas na luta pelo impeachment de Dilma Rousseff, detecta semelhanças entre a atuação da ex-presidente e a de Jair Bolsonaro. “É muito claro o paralelo deste governo com o segundo mandato de Dilma. Durante os anos da petista, havia uma deterioração econômica causada pelo aumento de gastos públicos, como acontece neste momento, que a forçou a cortar verbas destinadas a programas sociais. Devemos observar uma queda acentuada na popularidade de Bolsonaro entre as camadas mais pobres da população, em decorrência do corte do auxílio emergencial nos próximos meses. Além disso, ele, assim como a ex-presidente, está desesperadamente firmando alianças com o Centrão para tentar se salvar.”
Reforçando o tom crítico ao governo, o MBL protocolou na Câmara dos Deputados em 27 de abril um pedido de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, assim como fez há quatro anos com Dilma Rousseff. Segundo o grupo, estão sendo cometidos uma serie de crimes de responsabilidade. “Sem dúvida, desde que protocolamos a ação houve mais infrações, muito em razão da negligência criminosa do Presidente da República durante esta pandemia. No entanto, um impeachment sempre supera sua natureza jurídica e também envolve o contexto político. Neste caso, são questões relevantes a colocação do presidente sobre o estelionato eleitoral, seu alinhamento ao Centrão, a demissão de Moro e o enfraquecimento das medidas anticorrupção, a sanção do Juiz de Garantias, a promessa esquecida de uma política econômica liberal e a criação de uma estatal.” Apesar de apoiar a queda do presidente, Kim Kataguiri afirma que, atualmente, não existe uma conjuntura favorável a isso. “O impeachment é uma construção, nunca é fácil. É um processo lento que depende da mobilização nas ruas e da perda de articulação política. Pode-se dizer que hoje não há ambiente para o impeachment, mas que o clima se constrói para que haja”, conclui.