Nesta semana, a Câmara dos Deputados aprovou modificações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que envolvem novas regras para suspensão e validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Outro projeto, que ainda está em fase inicial de tramitação, porém, é que tem mexido com o setor nos últimos dias. Apresentado pelo deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), o PL 4474/20 torna facultativa a formação em uma autoescola para a obtenção da primeira habilitação. Na prática, o candidato estudaria online para a prova teórica, e com um condutor particular para o exame prático, que continuaria sendo aplicado por examinadores credenciados pelos Detrans. Atualmente, a contratação de uma autoescola é indispensável, segundo a lei. Apenas Centros de Formação de Condutores credenciados, os chamados CFCs, podem fazer a instrução. Segundo o deputado, além de “burocrático”, se trata de uma “reserva de mercado que não se justifica”. “Os exames finais, teórico e prático, são os que atestam a capacidade de dirigir. O processo de aprendizagem que essa pessoa passa para ser aprovado deve ser de livre escolha dela, e não uma imposição estatal”, afirma Kataguiri em entrevista à Jovem Pan.
Presidente da Feneauto (Federação Nacional das Autoescolas) e do Sindauto (Sindicato das autoescolas de São Paulo), Magnelson Carlos de Souza diz que o setor é o mais interessado na desburocratização do processo, mas discorda dos termos adotados pelo parlamentar. “O projeto do deputado é irresponsável e inadequado”, diz. “Eu sei das limitações, e que precisa melhorar muito, mas ele criou uma insegurança no setor a nível nacional, que repercutiu em todos os estados. E isso é apenas um projeto”, completou. “Como você acha que estão as 14 mil autoescolas que geram 120 mil empregos no Brasil? O cidadão já está indo à autoescola dizendo que vai esperar o projeto. É nesse sentido que eu falo que o deputado foi irresponsável. O que ele quis foi jogar para a torcida”, afirma.
Para Kim, a forma como o candidato se prepara para os exames não importa, desde que ele tenha bons resultados – “coisa semelhante já acontece com o Enem“. “O que realmente importa é ser aprovado, e o exame não poderá ser feito por qualquer pessoa, continua com os mesmos critérios de hoje. Para o teórico online, no projeto, eu especifico que o material de estudo deverá ser disponibilizado pelo Contran (Conselho Nacional de Trânsito)”, explica. Ele justifica que acha a presença dos candidatos nas salas de aula desnecessária: “Eu, quando fiz as aulas, basicamente sentava na sala com os colegas, o professor colocava o vídeo e a gente ia embora. É muito mais simples estar em casa vendo o material, e depois fazer a prova”.
Especialista em trânsito e ex-diretor de fiscalização do Detran-SP, Arnaldo Pazetti avalia que, se aprovado como está, o projeto pode ser o estopim de uma grande crise no setor. “Se a gente flexibilizar nesse momento, o que vamos ter na prática é a falência das autoescolas”, afirma. Para ele, o ideal seria uma transição por etapas, para que os resultados sejam avaliados de forma isolada. “Seria indicado desobrigar as aulas teóricas, sentir como isso impacta na formação do condutor, mas manter a obrigação das práticas. Em um primeiro momento, o processo já se torna mais barato. É bom lembrar que, se abrir para o instrutor particular, isso vai fazer com que o cidadão eventualmente tenha um barateamento, mas não se livre do custo”, lembra.
Souza diz que as autoescolas estão dispostas a debater o assunto. “Efetivamente, para o trânsito, o projeto pode contribuir muito pouco. Eu gostaria muito de sentar com o deputado Kim e debater. A proposição é desregulação do setor, e nós, autoescolas, somos totalmente favoráveis a isso”, sugere. Para ele, o poder público poderia repensar os modelos que já são adotados há “50 anos”. “Vamos diminuir a carga horária presencial, fazer um híbrido, semipresencial, desonerar para o cidadão, mas com respeito, responsabilidade. É uma tendência natural de evolução das coisas. Nós, enquanto entidades de classe, somos totalmente favoráveis à digitalização do processo, por exemplo.”
Uma das principais crítica do presidente da Feneauto é em relação a forma como o deputado apresentou o projeto em suas redes sociais – posts e vídeos com o título “Vamos acabar com a máfia das autoescolas”. “É de se lamentar muito a maneira, não o objeto. Aí que falo de irresponsabilidade. Ele mostra desconhecimento. As autoescolas são delegações de serviço público. As exigências estão postas pelo poder público. Se há uma máfia, é do poder público, à qual o nobre deputado faz parte”, conclui Souza.
Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2018, 33.625 pessoas morreram em todo o país em acidentes de trânsito, uma média de ao menos cinco vítimas a cada 60 minutos. Para Kim Kataguiri, a mudança na forma do aprendizado não impactará na qualidade do ensino de quem está indo para as ruas. “Nos países que implementaram esse modelo de transição das autoescolas para instrutores individuais, o número de acidentes continuou o mesmo. O problema do Brasil está muito mais relacionado a motoristas alcoolizados e infraestrutura de rodovias do que à formação em si de quem obtém a carteira de motorista. Ainda que o problema fosse a formação inicial, na minha avaliação, a resposta está em um exame mais rigoroso, e não na necessidade de ter as aulas em uma autoescola. Isso só é a imposição de uma burocracia, não a garantia da qualidade do aluno”.
Apesar de acreditar que os modelos adotados em países como Estados Unidos, citado pelo parlamentar, não funcionariam no Brasil, o gestor do órgão de classe concorda que o caminho para que o país tenha melhores motoristas está nos exames mais rígidos. “Vamos melhorar a educação, os valores éticos, e o processo de habilitação também. Podemos acabar com a carga horária teórica e prática sem nenhum problema, desde que tenhamos exames sérios, responsáveis, técnicos. Quando nós atingirmos a maturidade, não tenho nenhum problema em desregular o setor. É a mesma coisa quem quer ser advogado, sabe que para passar na OAB tem que se preparar. E aí não tem o jeitinho”, afirma.
Apresentado à mesa diretora da Câmara dos Deputados neste mês, a matéria ainda não teve seu mérito avaliado por nenhuma das comissões temáticas competentes, como manda o rito de tramitação da Casa. O projeto não é o único a tentar tornar a formação facultativa – o PL 3781/19, do deputado General Paternelli (PSL-SP), também trata do assunto. O texto tramita em conjunto com os mais de 200 outros projetos que têm como objetivo alterar os itens do Código de Trânsito Brasileiro.