SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em julho, Marcelo D2 estava ao vivo online entrevistando o próprio advogado para poucos milhares de espectadores. Eles conversavam sobre direitos autorais quando o convidado começou a falar sobre aproveitadores – pessoas que, indevidamente, cobram na Justiça a autoria de uma obra.
Para ilustrar a conversa, o advogado inventou um personagem – o Galinha. Enquanto dava explicações técnicas ao cantor, no chat da transmissão, Galinha deixou de ser só o exemplo de uma situação hipotética e virou sinônimo de vacilão.
“Entrou um pedaço na música, uma citação ao Galinha. Isso acontece toda hora no chat. Em toda transmissão acontece de alguém dar uma ideia, aí o outro já puxa outra coisa. Tinha momentos até de eu falar ‘galera, concentra aqui’. E, em outros, eu tinha que tirar o chat da minha frente.”
O caso ilustra o processo nada convencional de criação do novo álbum de Marcelo D2, “Assim Tocam Meus Tambores”. Durante um mês, o rapper carioca entrou ao vivo de sua casa praticamente todos os dias, mostrando, ao vivo à câmera, toda a trajetória de um disco, do conceito à gravação.
O disco começou a ser feito – e transmitido – no início de julho, e deveria acabar no último sábado passado, mas D2 pediu mais uma semana de prazo. Até o início desta semana, ele ainda tinha cinco vozes para gravar e duas letras e meia para terminar de escrever.
“Comecei a fazer o disco sem ideia nenhuma”, ele diz. “Só sabia o nome. O resto fui aprendendo no processo. É muito interessante porque o entusiasmo das pessoas me vendo fazer aquilo me entusiasma também. É natural que, no meio de um disco, você comece a ter dúvidas. Aqui, as dúvidas, muitas vezes, caem na hora.”
Muito do processo tem a ver com a participação dos fãs no chat. Ele lembra de que teve a ideia de usar um áudio com “ladies and gentlemen” na introdução do trabalho, mas logo foi repreendido. “Na hora já falaram ‘porra, bota em português’. Pensei, verdade, é ‘senhoras e senhores’. E daí outro já indicou um outro álbum de referência que tem aquilo. Talvez seja o processo mais interessante de que já participei na vida.”
O Galinha, naturalmente, virou personagem de uma das letras. O vacilão virtual foi criado pelo advogado do artista, mas só ganhou importância porque caiu nas graças dos fãs. E, no fim, quem teve a ideia de transformar a figura em música foi mesmo D2.
A situação joga luz até mesmo sobre os créditos de autoria. Rastrear o dono de uma ideia que vai acabar no disco passou a ser um trabalho paralelo, com a mulher do cantor anotando quem contribuiu efetivamente com alguma letra que vai parar no álbum.”Assim Tocam Meus Tambores” é uma criação coletiva de muitas maneiras. Há diversas participações, incluindo músicos com quem D2 nunca havia trabalhado, mas que entraram no disco depois de ver o rapper ao vivo online. Em alguns casos, os convidados foram sugestões do próprio público do rapper. Cenas como D2 mandando e recebendo áudios de Maria Rita, com convite para ela cantar no álbum, foram frequentes.
Entre os participantes estão nomes como Djonga, Juçara Marçal, Don L, BK, Criolo, Sain – filho de D2–, Maria Rita, Liniker, Russo Passapusso, Tropkillaz, Baco Exu do Blues, Anelis Assumpção, Rodrigo Ogi e Jorge du Peixe, entre outros. “Eu nem conhecia o [guitarrista do Metá Metá] Kiko Dinucci, e até os áudios de WhatsApp dele são bons.”
Além desse time de colaboradores, D2 trocava ideias e discutia conceitos com beatmakers do disco, como o DJ Nuts e o produtor Nave, por exemplo. O produtor Mario Caldato Júnior –frequente parceiro do rapper, conhecido pelo trabalho com os Beastie Boys, entre muitos outros– apareceu algumas vezes na transmissão.
Mas a criação coletiva também ultrapassou a música. Além do advogado, D2 entrevistou o historiador Luiz Antônio Simas, autor do livro “O Corpo Encantado das Ruas”, em que trata dos tambores, suas ligações com os rituais das religiões de matriz africana e o samba. Ele ajudou o rapper a tecer o conceito do disco, mas sua voz também entrou no álbum.
“Sigo ele no Twitter e achei que seria um bom cara para falar de tambores. Ele contou um conto de Zambi, e tem uma música que fiz com Liniker e Tropkillaz que se chama ‘Deus de Outro Lugar’ – que fala disso. Pedi para ele escrever um monólogo, que o Criolo vai ler no disco. Essas coisas foram surgindo.”Na Twtich, plataforma usada por D2, assinantes são aqueles que pagam uma mensalidade para ter acesso a serviços exclusivos da plataforma. Um deles é escolher um canal para seguir e para o qual parte do dinheiro é redirecionado. Apesar de os vídeos estarem disponíveis para o público comum, só assinantes podiam comentar.
Foi a partir de um convite da Twitch que D2 decidiu gravar o álbum. “Queria fazer uma performance artística. Comecei cozinhando, mas não sou um artista da cozinha. Era mais brincadeira, para aprender a me comunicar nessa via. Ficar fazendo live eu não achava interessante. Aí vi que posso ser um streamer –não de games, mas de arte. O que eu faço é audiovisual, e o movimento natural foi fazer um disco.”
É difícil saber se D2 é o primeiro artista a criar e gravar um disco inteiro nesses moldes – basta conexão à rede e gravadores para que qualquer pessoa faça o mesmo. Há alguns anos, o Sepultura já transmitiu sessões de gravação de seus álbuns, mas em outro esquema.
A iniciativa do rapper também lembra PJ Harvey. Em 2015, a cantora gravou o disco “The Hope Six Demolition Project” em uma instalação em Londres. O espectador que pagasse £ 15 poderia ver a artista gravando por 45 minutos numa galeria.
Em tempos de pandemia e isolamento social, a feitura do álbum de D2 também revela como funcionam as colaborações a distância. Numa delas, gravou percussão e bateria com Ivan Conti, o Mamão, integrante do grupo Azymuth.
Mamão dividia a tela com D2 e Caldato Júnior. Foi possível ver os três discutindo timbres, exibindo toda a técnica de gravação dos tambores e debatendo ideias. Também foi possível ouvir as faixas antes e depois dos acréscimos dos instrumentos –como a bateria e os batuques de Mamão por cima de uma base, por exemplo.
“Assim Tocam Meus Tambores”, diz D2, é uma ode à coletividade, um conceito que está no cerne do hip-hop enquanto gênero. Segundo o cantor, o estilo musical é uma “cultura de apropriação”, que usa desde samples a expressões da rua na construção de obras. No caso do álbum de D2, esse conceito se estende e vai desde as entrevistas interativas até o uso de ideias do chat.
Depois de lançar o disco, o rapper vai preparar outro álbum, a segunda parte do primeiro projeto, agora dedicado ao samba. Ele também diz que vai gravar um filme, todo em casa, para acompanhar o trabalho.O mais difícil, afirma D2, é fazer tudo no limite do tempo. “Estou exausto, trabalhando no disco todo dia, sem folga. Teve momentos que pensei que não ia conseguir por estar cansado demais. Mas aí você entra no chat, vê a galera empolgada com aquilo. É isso que motiva.”