A prioridade zero de toda e qualquer indústria nesse momento é sobreviver ao estrago nos negócios provocado pela pandemia do novo coronavírus. Com o setor automobilístico não seria diferente. Após a redução nas vendas, que beirou os 80% nos meses de abril e maio, a estimativa é que o mercado de veículos leve três anos para se recuperar.
Porém, mais grave que o problema de caixa das fabricantes – e de toda a cadeia que orbita em torno delas – são as sequelas que a pandemia pode deixar para o setor automobilístico brasileiro. A indústria local corre grande e real risco de desaparecer, em consequência de um movimento que foi acelerado pela pandemia: a eletrificação das frotas de veículos leves nos maiores mercados mundiais.
Estas conclusões aparecem no trabalho Automotive Restart da Bright Consulting, líder em inteligência competitiva para o mercado automotivo.
Diante da queda livre das vendas nos países europeus durante a pandemia, as fabricantes de veículos iniciaram movimentos para retardar e relaxar as legislações ambientais e de eficiência energética. Não deu certo, e as metas foram mantidas.
Por outro lado, a Comissão Europeia definiu um mastodôntico pacote de 850 bilhões de euros para resgatar a economia da região, destinando grande parte dos recursos a iniciativas voltadas à sustentabilidade. É o chamado “Green Deal” europeu.
Franceses e alemães estão ganhando até 10 mil euros, cerca de 60 mil reais, na compra de um veículo elétrico. Parte desses bilhões de euros estão subsidiando o preço, ainda bastante alto, das baterias de carros elétricos, e a construção de redes de abastecimento.
O que isso tem a ver com o Brasil? Tudo, a começar pelo fato de que o Estado brasileiro não tem a menor condição de despejar subsídios para qualquer setor que seja. Fora isso, boa parte das fabricantes locais tem matriz na Europa, e as decisões tomadas lá impactam aqui.
A migração da produção de veículos movidos a motores de combustão interna para motores elétricos deve desempregar 70 mil trabalhadores apenas na Alemanha e cerca de 200 mil na União Europeia. Não é difícil prever que as matrizes darão preferência a manter o maior número de empregos em seus países, e, para isso, optem por cortar a produção e, claro, milhares de empregos em mercados menores, como o brasileiro.
A eletrificação imediata da frota pode fazer sentido para um continente rico e que corre para substituir uma matriz energética, que ainda carrega um alto percentual de fontes fósseis, como o carvão, para a geração de eletricidade.
Para o Brasil, no entanto, o carro elétrico ainda não é a melhor alternativa. Um dos mitos a serem derrubados é que o carro elétrico tem emissão zero de carbono, o que vem sendo repetido ad infinitum pela grande maioria de seus defensores.
É claro que em um veículo elétrico, que não tem sequer escapamento, a emissão de gases é zero. Ocorre que essa conta, que considera apenas os gases do escape, conhecida como ciclo do “tanque à roda”, não reflete o real impacto ambiental provocado pelos carros elétricos, pois desconsidera a energia armazenada nas baterias do veículo.
Se essa eletricidade for gerada pela queima de carvão ou óleo combustível, como ocorre em boa parte do hemisfério norte, estamos falando de carros elétricos igualmente poluidores.
Mais correto seria medir também o impacto ambiental dos recursos usados para produzir a eletricidade carregada pelas baterias, no caso dos elétricos. No caso dos veículos com motores a combustão interna, a conta deve medir o impacto gerado pela produção da gasolina, do diesel ou do etanol, por exemplo. Assim, medimos o ciclo do “poço à roda” e a coisa muda de figura.
A título de comparação, considerando o ciclo do poço à roda, um veículo médio híbrido (que combina combustão e eletricidade), abastecido com etanol de cana, emite 60 gramas de CO2 por quilômetro percorrido, enquanto um carro elétrico puro, da mesma categoria, emite 72 gramas de CO2 por quilômetro.
Nesse momento, o Brasil não necessita nem tem condições de realizar uma mudança radical de plataforma tecnológica. Pode optar por uma evolução coordenada para veículos híbridos com modernos motores de combustão interna, utilizando combustíveis de baixo impacto de carbono já disponíveis, como o etanol. No curto prazo, as emissões da frota brasileira podem despencar rapidamente com o aumento da mistura de etanol na gasolina.
É preciso lembrar que o Brasil possui 45% de energia renovável, entre hidráulica, solar, eólica e derivadas de biomassa, com destaque para o etanol. Esse ativo, porém, precisa ser combinado com legislações e programas ambientais e de eficiência energética atualizados e capazes de mostrar a real situação do Brasil em relação ao mundo.
Basta saber que o teste de emissão de escape de veículos leves em vigor no Brasil foi baseado no teste europeu, que, por sua vez, foi criado para inibir a fraude em emissões de carros a diesel, escândalo que ficou conhecido como “dieselgate”. A inadequação é flagrante, considerando que não há carros leves a diesel no mercado nacional.
O Brasil tem muito mais a ganhar se realizar a migração dos motores de combustão interna para a hibridização combinada com etanol até a futura bioeletrificação via célula de combustível e energia renovável. Avançará ainda mais se aplicar, de fato, a legislação de Inspeção Veicular e implantar a indústria de reciclagem de veículos, iniciativas capazes de gerar empregos e acelerar o caminho na direção da mobilidade limpa pela renovação da frota.
Soluções existem, mas dependem de ser conduzidas pelo governo, que é o principal regulador no campo da mobilidade em qualquer parte do planeta. Sem tratar a questão de maneira estratégica, o Brasil não passará de mero passageiro no processo de redefinição do futuro do mercado e da indústria automobilística.
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