Funkeiro Daniel Pedreira Sena Pellegrini, de 20 anos, foi morto em julho de 2013 durante show no CDHU San Martin, em Campinas. Ao g1, Carol relembra convivência com irmão, vê falhas na apuração em Campinas, e destaca trajetória musical e como era o irmão fora dos palcos.
“Não consigo me direcionar a ele como MC Daleste. Para mim é o Daniel, sempre foi e sempre será”. Tristeza, indignação, saudade e sorrisos escondidos até nas boas memórias marcam os relatos de Carolina Sena Pellegrini ao g1 sobre o assassinato do irmão, em um crime que completa dez anos nesta sexta-feira (7). O cantor de 20 anos teve a vida interrompida após ser baleado em um show no CDHU San Martin, em Campinas (SP).
Carol, como ela prefere se apresentar em redes sociais, demonstrou revolta com a falta de respostas do estado sobre autoria e motivação, incluindo a forma de condução dos trabalhos pela Polícia Civil.
Além disso, ela revisitou a carreira do MC desde o início dele em um grupo de axé até a transição e sucesso no funk após mudança do estilo “proibidão” para o “ostentação”, citou a previsão de músicas inéditas a serem lançadas e fez relatos emocionantes sobre os sonhos do irmão e luto da família.
MC Daleste foi alvo de dois disparos enquanto cantava para um público estimado em 5 mil espectadores sobre um palco improvisado em carreta durante uma quermesse. O homicídio ocorreu em 6 de julho de 2013, e o músico morreu na madrugada seguinte, no Hospital de Paulínia.
Nesta semana, o g1 apresenta a série de reportagens “Herói da favela e ferida do sistema”. São cinco conteúdos especiais até esta sexta-feira, entre eles, entrevistas com o delegado e promotor que atuaram no caso, pesquisadores, além de um retrato sobre o bairro onde o crime aconteceu.
Do axé ao funk
Revisitar as canções de MC Daleste significa passar por uma sensação de desespero, diz Carol, em virtude da ausência. Aos 41 anos, ela lembrou das dificuldades durante a infância marcada pela pobreza, contou sobre os cuidados com Daniel, irmão mais novo, e o início dele na música pelo axé.
“Praticamente eu ajudei na criação […] Minha mãe ficou acamada 11 anos, depois veio a falecer. O Daniel era muito criança [tinha 6 anos] costumo dizer que não perdi um irmão, perdi um filho. Ele sempre foi nosso caçulinha, o preferido meu, o preferido do Rodrigo [outro irmão]”, explicou Carol ao lembrar sobre desafios enfrentados pela família após a mãe sofrer acidente vascular cerebral (AVC).
“Se por um lado faltavam condições básicas de conforto, contou, por outro havia uma união compensadora e a mãe impedia brigas. “Pobreza de não ter banheiro, ter que fazer as necessidades no balde, não tenho vergonha nenhuma de falar […] de faltar coisa para comer, uma situação escassa.”
Um momento marcante da infância, falou, era o dia de passear com a família em uma área ao lado do Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Ela ressaltou que permanece morando na Zona Leste de São Paulo, região destacada por Daleste em letras. “Acho que até hoje sou fissurada por aviões […] Era um lugar lindo aquele, Daniel andando de bicicleta, jogando bola, era uma criança normal e feliz”.
A paixão de Daleste pela música teve como referências o hábito do pai de ouvir música em alto e bom som logo nas primeiras horas da manhã, enquanto o ingresso propriamente dito no universo artístico teve apoio do irmão, que começou no axé, e outras pessoas da família com apoio de um amigo.
“Ele começou junto com o Rodrigo e dançando, não foi cantando. Mas era ritmo da moda e a cada ano é uma coisa diferente. O Rodrigo sempre foi muita referência na vida do Daniel”, falou Carol.
Segundo ela, nessa época houve a perda da mãe e Daniel passou a se dedicar mais ao sonho de continuar na música. A transição no estilo, falou, ocorreu pelo que ela chama de “modinha” seguida por adolescentes e pelo fato de que na região ocorriam competições de rimas entre MCs. Carol se emocionou ao lembrar de um escrito deixado pelo irmão em um caderno guardado pelo pai deles.
“Era corriqueiro deixar dinheiro para ele comer ou para o dia seguinte. Aí ele falou que deixei R$ 30 e ele conseguiu gravar a primeira música. Só que eu não sei qual é, não sei se foi sucesso, mas está lá escrito num dos cadernos dele e com o meu pai”, explicou Carol, que trabalha no segmento de beleza.
‘Preço caro’ com proibidões e ostentação
Ao destacar que os Racionais MC’s eram a principal referência artística de Daniel à época, ele e o irmão viram “que eram muito bom” no funk e começaram a se destacar. Na primeira fase, Daleste cantou os “proibidões”, letras que costumam percorrer temas como sexo, drogas e atos de violência, mas teve como foco principal acontecimentos da periferia onde moravam, destacou a irmã dele.
“O Daniel chocou muito as pessoas, eles não cantavam p.., esse tipo de coisa, entendeu? E talvez ele tenha pago um preço muito caro por isso. Eu tenho isso na minha cabeça”, falou Carol. Uma das músicas de destaque à época foi “Apologia”, com o trecho “matar os polícia é a nossa meta”.
“Eu não gostava das apologias, a gente brigava muito, a gente discutia muito por causa disso. Eu falava para ele: ‘Você não pode, tudo o que você ver, colocar num papel e cantar […] Eu temia pela vida deles […] Daniel nunca participou de nada do crime, nunca teve passagem, nada disso”.
Sobre a pegada de “ostentação” na música, conteúdos que misturam a batida do funk carioca com letras sobre bens materiais, incluindo carros, motos, óculos, roupas e bebidas, Carol ponderou que isso em nada se confundia à personalidade do irmão. Ela enfatizou a humildade do cantor.
‘Omissão e incompetência’
Durante a entrevista, Carol fez uma série de críticas ao trabalho da Polícia Civil em Campinas. A arma e as balas que atingiram MC Daleste nunca foram localizadas, e o caso passou a ser também apurado pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo a partir de 2014. Relembre aqui matéria sobre a investigação.
“Foi extremamente incompetente. É só isso que eu posso te falar. Me pergunta aí o calibre da bala que matou o meu irmão? […] Não sabem. Isso é uma vergonha […] A polícia de Campinas foi muito omissa nesse caso. Não sei se é porque era só um faveladinho, entendeu? Eles enxergam dessa forma. Só mais um um funkeiro, entendeu?”, criticou. Ela afirmou ainda que teria sido tratada de maneira grosseira pelo delegado à frente do caso em Campinas, Rui Pegolo. Veja abaixo a posição dele.
“Eu falei para ele: ‘Não estou aqui como família do criminoso, estou aqui como a família da vítima”, lembrou. Para ela, a motivação do crime não foi passional e ela rejeitou a hipótese de que o irmão tenha se envolvido eventualmente com alguma mulher comprometida.
“É um crime encomendado, é um crime de uma pessoa que deve ter muito dinheiro. Não creio que seja passional. Um crime passional ele é cheio de falhas, já tinha achado. Cheio de emoções”, alegou Carol.
Daleste foi socorrido ao Hospital de Paulínia, mas morreu após ter anemia aguda causada pela perda de sangue, de acordo com laudo do Instituto Médico Legal (IML). Carol alegou que a festa era regular, mas não apresentou documentos ao g1. A prefeitura, porém, disse que não autorizou ou concedeu alvará, e que à época das apurações também não conseguiu localizar o responsável pelo evento.
ONG, músicas inéditas e o que restou?
Em meio à emoção pelos dez anos da perda, Carol diz que a vida da família mudou diante do luto e admitiu ter perdido a esperança de que o estado consiga elucidar a autoria do caso antes da prescrição, que ocorre 20 anos após o homicídio. Com isso, a previsão legal dispõe que, caso o autor do assassinato seja descoberto após este período, ele deixa de ser punido pelo estado brasileiro.
“Nossa vida acabou ali naquele dia 7 de junho de 2013 […] Eu perdi as esperanças, mas eu quero muito que a vida me surpreenda”, ressaltou.
Segundo ela, músicas inéditas de MC Daleste ainda devem ser lançadas, há questões jurídicas em tratativas sobre outras canções já divulgadas, e um dos sonhos do funkeiro era criar uma organização não governamental (ONG) com objetivo de apoiar crianças e adolescentes. A data, contudo, é incerta.
“É um segredo da nossa família […] Graças a Deus tem [bastante material para lançar]. A história dele vai permanecer rolando de uma forma ou de outra. Ele vai ser lembrado, o legado dele está com a gente […] A gente não teve um ovo de Páscoa, a gente não teve um Dia das Crianças com brinquedo. Vamos levar isso para comunidade”, contou sobre a iniciativa que planeja levar adiante no futuro.
O que diz a Polícia Civil?
Sobre as críticas feitas por Carol, o delegado responsável pela investigação do caso em Campinas, Rui Pegolo, afirmou que a Polícia Civil empreendeu todos os esforços para solucionar o crime.
“Temos umas das maiores taxas de esclarecimentos de crimes violentos do Brasil, razão pela qual o comentário em tela é isolado e não condiz com a realidade”, rebateu.