Acusado de estupro, aliciamento, cárcere privado e outros crimes por 14 mulheres, Saul Klein é investigado por ter mantido, durante mais de 15 anos, uma estrutura que abasteceria suas residências em São Paulo e Boituva (SP) com jovens mulheres. O documentário “Saul Klein e o Império do Abuso” detalha o organograma de motoristas, recrutadoras e até médicos, montado para satisfazer o empresário. No topo dele, abaixo apenas do próprio Klein, está a figura de Marta Aparecida Gomes da Silva
Ao longo dos depoimentos dados ao documentário e à Polícia Civil, o nome de Marta é citado inúmeras vezes. Ela é apontada como a chefe de todo o esquema nas propriedades do empresário, tanto pelas mulheres autoras da denúncia como pelo próprio Klein. Até agora, entretanto, ela não depôs à Polícia Civil —o inquérito está aberto desde dezembro de 2020
Pelas investigações, Marta pode ter que responder por organização criminosa, tráfico de pessoas, favorecimento à prostituição, mediação para favorecer a lascívia e falsificação de documentos. Klein passava pelo menos quatro dias da semana com dezenas de jovens mulheres em suas propriedades. Várias alegam ter sido estupradas e forçadas a se submeter às vontades do anfitrião
Nem as mulheres nem os representantes de Klein sabem do paradeiro de Marta. Pessoas ligadas tanto a Klein como às vítimas afirmam que ela já foi intimada diversas vezes, mas não respondeu. A investigação corre em segredo de Justiça, e detalhes sobre o número de tentativas de intimação ou como elas aconteceram não são públicos
A mesma dificuldade das investigações tem sido encontrada pela reportagem, que tenta ouvir Marta de diferentes formas desde 2020. Seu advogado trabalhista, Paulo Faia, foi contatado por e-mail e por telefone, mas não retornou. Foram deixados seis recados com a secretária do advogado Paulo Amador Cunha Bueno, que representa Marta no inquérito policial. Nas seis vezes houve promessa de retorno nos próximos dias, o que jamais aconteceu. Em uma sétima tentativa, a reportagem pediu uma resposta definitiva sobre a disposição de Marta em se manifestar. Ela foi negativa.
As filhas de Marta e a empresa da qual são sócias, chamada Hype Beachwear, também foram procuradas. O primeiro contato foi pelas redes sociais. Seguindo orientação ali recebida, a reportagem enviou um longo e-mail detalhando as acusações e o material jornalístico que seria produzido sobre elas. Não houve resposta.
Marta ainda não contou sua versão às autoridades, mas não é uma pessoa que vive longe dos holofotes. Ela é mãe de Marion e Heloisy Oliveira. Heloisy é ex-mulher do ator Micael Borges e seguida por mais de 130 mil pessoas no Instagram. Juntas, as irmãs são fundadoras da conhecida marca de biquínis Hype Beachwear, que já vestiu famosos como Anitta, Preta Gil e Bruna Marquezine. A empresa também é citada nas investigações, uma vez que foi usada para atrair mulheres e colocá-las nas casas do empresário, onde sofreram abusos sexuais, segundo relatam.
Marta aparece nos depoimentos das vítimas como uma figura ao mesmo tempo onipresente e misteriosa. É apontada por todas como chefe da operação —logo abaixo de Saul— de aliciamento e exploração sexual de mulheres, supervisionando o recrutamento, a rotina e o comportamento de todas elas. Era temida, mas raramente vista pelas garotas. Suas ordens e direcionamentos chegavam a todo momento via aplicativo de mensagens e por meio de outros funcionários, mas encontros com ela eram reservados para casos excepcionais que saíam da insólita rotina das casas de Klein.
A defesa do empresário e filho do fundador das Casas Bahia também aponta Marta como líder do esquema, mas vai além: transfere a ela toda a responsabilidade sobre atos de violência que possam ter ocorrido. A versão é que Saul Klein contratou Marta para recrutar mulheres que iriam a eventos organizados para satisfazer o fetiche “sugar daddy” —homens mais velhos que gostam de manter relacionamentos afetivos com mulheres sustentando-as e dando a elas presentes caros. Caberia, assim, a Marta, toda a responsabilidade pelo aliciamento das garotas e pela organização da rotina delas nas propriedades de Klein.
Marca que veste famosas era usada para atrair mulheres.
Em seu site, a Hype Beachwear diz que seus produtos são “queridinhos de celebridades como Anitta, Bruna Marquezine, Camila Coutinho, Yasmin Brunet, entre outras”. O texto também diz que as donas da marca, Heloisy e Marion, a fundaram “influenciadas pela mãe”. A empresa, criada em 2014, tornou-se referência no segmento, tem 255 mil seguidores no Instagram e participa de diversos eventos de moda
No inquérito que investiga Saul Klein, pelo menos duas mulheres dizem ter sido atraídas pelas redes sociais para participar de uma campanha da Hype em 2015. No processo de seleção, descobriram que a campanha não existia e que, na verdade, estavam sendo aliciadas para frequentar a casa do empresário e manter relações sexuais com ele. Uma delas conta ter conhecido pessoalmente Heloisy e Marion.
Um desses relatos é de uma garota que tinha 17 anos na época e passou dois anos frequentando as casas de Klein. Ela se suicidou no final de 2019, e sua morte foi um fator determinante para que outras mulheres decidissem denunciar o empresário e seu esquema ao Ministério Público. Essa história é contada em profundidade em “Saul Klein e o Império do Abuso”. Uma das provas do inquérito é uma carta enviada por ela a Klein em 2017, que cita a Hype.
Uma outra mulher que, por medo, decidiu não fazer parte da denúncia criminal contra Saul Klein, disse à reportagem ter visto Marion Oliveira nas propriedades do empresário em diversas ocasiões. Ela levava biquínis da Hype e outros produtos que eram dados por Klein às garotas durante festas e brincadeiras sexuais. Algumas das peças que a vítima diz ter recebido estão guardadas até hoje.
Marta é figura recorrente nas descrições do processo de aliciamento das garotas, que quase sempre se dava com a promessa falsa de um emprego convencional, como modelo ou promotora de vendas. Ensaios fotográficos falsos aconteciam em um flat, e as mulheres eram levadas a um encontro sexual com Klein. Ali, várias afirmam ter sido estupradas pela primeira vez. Muitos desses “ensaios” utilizavam biquínis da Hype.
Em processo, Marta alegou ser ‘governanta‘ de Klein
Marta Aparecida Gomes da Silva move, ainda, uma ação trabalhista contra Saul Klein. O processo corre em segredo de Justiça, mas a reportagem teve acesso parcial aos autos. Em uma peça na qual dá poucos detalhes do trabalho que desempenhava, Marta se denomina “governanta” e cobra de Klein mais de R$ 4 milhões. Ela diz que trabalhou para o empresário de 2005 a 2019, de segunda a segunda-feira, das 9h às 23h, sempre sem registro e sem receber férias ou outros direitos trabalhistas. Não há qualquer menção dela à prática de exploração sexual de garotas
Klein, por sua vez, afirma no processo que contratava a Avlis Eventos —empresa que tem como sócias Marta e sua filha Heloisy— para organizar festas e angariar modelos para fazerem figuração nessas festas
“[Marta] era encarregada das questões operacionais [contratação de modelos, decoração, alimentos, bebidas, presentes entregues aos convidados e a logística de transporte]. Neste ponto, vale ressaltar que o transporte dos convidados era providenciado pela própria empresa, que disponibilizava motoristas para tal finalidade. Os eventos ocorriam, basicamente, seguindo o mesmo ‘cronograma’; a referida empresa, após tudo pronto, disponibilizava uma pessoa que ficava como responsável pelo evento [cuja atribuição era a de suprir quaisquer percalços durante o evento] e, em média, 15 modelos do sexo feminino que faziam a figuração [além de garçons, músicos, malabaristas, bartenders e etc]”
A ação trabalhista ainda não foi julgada. A próxima audiência está marcada para julho de 2022